domingo, 15 de fevereiro de 2015

Menina

     O cheiro de mofo a trouxe de volta a consciência e os olhos foram então se acostumando com a penumbra abafada. Foi dando conta de si aos poucos, a pele melada de suor  e a tentativa de reconhecer aquele lugar. Forçou os olhos, tentando ver melhor. Aquelas paredes lhe soaram familiares a principio, mas depois dissipou a ideia, achou-a esdruxula. A boca seca pedia água .
     O papel de parede amarelado descascava pelas paredes mofadas, levantou-se com cuidado, vestiu-se. Movia-se devagar apesar da pressa. Temia acordá-lo. De barriga pra cima ele roncava alto e ela mal lhe lembrava o nome, algo com ph, como ele mesmo frisara a noite passada.
"Ele poderia ter me matado." pensou, como se todos os outros não pudessem ter feito o mesmo antes, olhou as mãos brancas em repouso sobre a barriga  avantajada. 
  Arrastou-se como um felino até a porta, as sandálias na mão. A maçaneta enrijecida ao toque, trancada. Um arrepio cortou-lhe o corpo todo de assalto, ele poderia te-la matado mas não o fizera. Não ainda. Riu de si mesma, não era primeira vez e decerto não seria a ultima que teria aquele tipo de rotina. Provavelmente o aspecto decrepito do quarto lhe causasse o horror. Numa casa antiga daquelas era de se esperar que as coisas emperrassem, mas oras bolas.
 O homem cujo nome tinha ph virou-se na cama. Ela hesitou. Depois caminhou até o banheiro de pequenos azulejos azuis claros. No espelho fungos comiam o reflexo do sol forte lá de fora. Abriu o armarinho. Uma escova de dentes velha, pasta de dentes endurecida, grampos de cabelo enferrujados. Saiu do banheiro, tentou a porta novamente. Trancada. 
O homem cujo nome tinha ph moveu-se novamente na cama, dormia pesado, o esforço na noite anterior somado ao álcool garantiam que sua estadia fosse demorada nos braços de morpheu.
Passou os olhos em revista deveria ter alguma chave por ali, talvez ele fosse só mais um velho neurótico a trancar as portas todas com medo de ladrões. Ao lado da cama um criado mudo de madeira escura, abriu a gaveta com cuidado, ali nada além de um laço de fita amarelado que talvez  fora cor de rosa no passado, alguma mulher passara por aquele canto e esquecera para sempre seu adorno, mas que coisa, há muito tempo mulheres não usavam mais laços de fita, nem mesmo as meninas, o homem de nome com ph tinha muitos anos de idade, isso sabia, mas ele também o tinha, como queria sair dali...
Esperar o homem acordar não estava nos seus planos, olhou  novamente ao redor, pensativa, quando deu-se conta do quadro na cabeceira da cama. Grande e desbotado, a moldura fosca como uma lápide, por trás do mofo e da traça, uma menina sentada num balanço numa paisagem que facilmente se encontra adornando um calendário. Aproximou-se. E então viu que a menina no balanço parecia chorar copiosamente. Que coisa de mal gosto quadro de criança chorando! Resolveu checar novamente o criado mudo. Não se deu conta da primeira vez mas uma navalha jazia ao lado do laço de fitas, num reflexo guardou-a consigo,  nunca se sabe, a porta continuava trancada. Jurou para si mesma que nunca mais iria a casa de ninguém, tantos motéis pela cidade e ela fora se enfiar justo ali? Com cuidado olhou os bolsos das calças que o homem usara na noite anterior que ainda jaziam num canto do chão. Nada. 
    Na parede o quadro, aquela criança chorando no balanço lhe embrulhava o estomago, não combinava aquela menina triste com aquele jardim bonito, a menina devia ter onze anos no máximo, os olhos estavam agora tão nítidos, eram tão vividos, mas choravam. Tentou limpar-lhe as lágrimas, quando viu chorava também, recuou, precisava ir embora, forçou a porta, dessa vez sem cerimonias "Tentando me abandonar, pantera?" ela se virou assustada  "Não, é que precisava ir embora, a porta emperrada..." as lágrimas da menina e o susto. "Que estranho..." ele levantou-se, a carne rosada, estendeu-lhe a mão "Venha belezinha!" e ela deu a mão para ele e voltou para a cama, mas a menina no quadro, oh céus, quantas lágrimas , o homem de nome com ph beijou-a com gana, mas ela não queria mais, a menina chorava e suas lágrima pingavam da moldura na parede e molhavam a cama, tornando os lençóis pesados e os beijos carregados, as lágrimas caiam no chão molhando o assoalho de madeira, as lágrimas enchiam o quarto, infantes e desperdiçadas, na casa vazia o que se ouvia era só o barulho das gotas d'água caindo e enchendo o mundo de pranto, e tudo tornou-se pesado e rançoso, e então lembrou-se da navalha (as gotas insistentes caiam encobrindo o murmurio da menina no balanço) e então lembrou-se da navalha. Empurrou o homem "O que há com voce ?" ele perguntou,a voz soou longe porque mais alto iam os murmurios da menina que chorava ali tão perto, ela tirou a navalha , abriu e agora o pranto que inundava a casa tornava-se vermeho de sangue e gordura. o homem cujo nome tinha ph caiu sem vida ao seu lado. e tudo cessou num silencio denso.
O barulho da agua cessara. olhou o teto, ainda deitada , as taboas corroidas de cupins. Levantou-se, lavou as mãos na pia pequena do banheiro de azuejos azuis. 
aproximou-se do quadro na parede, a menina era agora só mais uma menininha sorridente se divertindo em seu balanço. beijou o quadro, pegou a bolsa e saiu. O sol forte la fora doeram os olhos, passou pelo jardim ressequido da casa, uma rua de subúrbio. Caminhou até em casa. Mais um domingo somente. 
  Foi coisa de dois ou três dias depois que os jornais da região noticiaram a morte do homem com ph, que se dera em circunstancias misteriosas. nenhum suspeito. Nada além da estranha coincidência, o homem morto da mesma forma que matara a enteada quarenta anos antes. 










 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Amor de Pai II

"As my life flashes before my eyes I'm wondering will I ever see another sunrise? So many won't get the chance to say goodbye, but it is too late to think of the value of my life..."


O Isaac nunca ficou muito tempo no seminário, por que acabaram concluindo por lá que ele não tinha vocação nenhuma, caso perdido apenas tentar convencer o pai dele disso. Conversamos duas vezes. Os olhos ferozes e fervorosos, "Não, não se contraria Deus!", mas deus para ele era a própria opinião.
  Ao Isaac ele nunca disse que a mãe biológica aparecera anos depois atrás de notícias, mas o próprio Isaac descobriu por si só porque ouviu uma conversa dos dois pelo telefone. Preferiu calar-se fingir que não sabia de nada, desde pequeno sabia que com seu pai só se concordava, a mãe biológica ate então não fizera falta, só começou a sentir o peso da obrigação do seminário depois dos doze anos.
Quando voltava das compulsórias incursões no seminário voltava também ao colégio e a vida normal, as meninas olhavam os olhos azuis marinho não sem uma certa desconfiança, era bonito, dançava até muito bem também, mas elas preferiam os malvados. Enquanto isso, eu sempre buscando entre a barulhenta massa uniformizada um olhar do rapaz que nas tardes quentes aparecia no meu apartamento tomando uma coca e falando freneticamente das coisas do seu dia, eu ouvia, tomava nota, tomava coca, fazia amor.
Foi quando começou a chuva. Aquele céu plúmbeo e muita água, descendo pelas calhas, eu fui levá-lo ate o portão, acabara de escurecer, era tão cedo, meu prédio era pequeno e não tinha porteiro, eu fui levá-lo ate o portão, ele andava mais cabisbaixo por que definitivamente iria embora, decidira uma dia antes, ia embora sim para qualquer lugar que fosse, aquela idéia que toma de assalto sempre as crianças, de fugir de casa e ser dono das decisões, quanta inocência, não podia mais conviver com o pai, que o queria para si tão egoísta, só faltava fazê-lo ajoelhar no milho, fora de si...
Eu me despedi dele discretamente, vá com Deus Isaac, tire da cabeça essa ideia de fuga, é bobagem, você sabe, fique bem, senão por você, por mim, eu me preocupo, na verdade era puro complexo de Édipo, eu só percebo isso agora, mas não me importa mais, por que só importa é que era, foi, bonito, ou não, foi.
Ele ia embora, atravessar a rua na bicicleta e veio o carro , ele era ainda um homem jovem , as mãos grandes segurando o volante, então era isso, era fúria, ele decerto o seguira, viu o beijo, aquilo não foi nada, ele já não pode afirmar nada, por que se perdeu no tempo a fúria da voz que gritava que o filho estava perdido antes de acelerar o carro, Isaac hipnotizado apenas deixou-se ficar onde estava, o motor roncou alto assim como o pneu no atrito com asfalto, o carro avançou sobre ele, arremessando seu corpo para o meio da rua e batendo num poste logo a frente e desde então os segundo viraram seculos. 
      O carro virou sucata e me vi estranhamente de fora, como se fosse outra pessoa lendo o que se passava, eu estrangeira de mim mesma, olhei o cadáver dentro do carro nunca me importei tão pouco com uma pessoa como naquele momento.
A chuva continuava agora bem fraca, um sereno, parada onde estava vi Isaac procurar conforto com os olhos pueris desesperados por respostas. E o silencio. 
Fui sentando-me no portão, a cabeça entre os joelhos, dando tudo na vida para jamais ter visto nada, para ter nascido cega. Mas mesmo que a cegueira agora me atingisse de nada adiantaria por que já havia visto tudo e a única memória da luz que me restaria seria essa. Com a cabeça entre os joelhos eu fiquei até me tirarem dali, apática e presa num eterno replay. Com a cabeça entre os joelhos eu não quis ter mais nada. Não quero mais lembrar. Tenho que voltar para minha casa, tenho que tentar fechar os olhos e dormir, por que agora a chuva parou de vez, a rua molhada reflete os postes, ainda está ali a lata de coca cola, no criado mudo, é melhor que limpem logo a rua, limpem o mundo, que eu preciso dormir. E que amanhã se enterrem três mortos.

Amor de Pai I

“ Ele poderia muito bem ter pelo menos dezenove. Dezoito que fosse.  Pelo menos dezoito, meu Deus, para não ser tão mal. Dezoito para não soar tão ruim...”

Eu ainda olhei a chuva cair . Ela insistia há uma semana. Eu queria morrer, como em tantas outras vezes o quis, tantas vezes que morrer virou tão banal que pareceu pouco, talvez eu quisesse só deixar de ter visto as coisas, talvez isso fosse ainda maior que morrer. 
As cadeiras, as mesas, os pôster de campanha, endereços de ongs nas paredes e as pessoas. Pessoas e mais pessoas. Transitavam de um lado para o outro os homens fardados, seguravam a burocracia na prancheta como se fossem a cura do cancer, do meu lado uma travesti acendeu um cigarro "Raça ruim do caralho!" murmurou.
Eu sorri. O estado criara mesmo uma raça de humanos de pouca ou nenhuma sensibilidade ( a sensibilidade que havia decerto de ser um defeito posto que nos torna vulneráveis, seres humanos que não sentem não se findam e eu ali já me via escorrendo ralo abaixo, como resto de água de banho) e no final a lei me parecia cada vez mais transformar o mundo numa enorme pré escola onde não podia mais nem mesmo ter poder sobre meus próprios pulmões, se assim os quisesse destruir, segregando-me aquela varanda imbecil por cinco intermináveis minutos até o filtro se queimar entre meus dedos. O frio aumentava.
E se eu dissesse que não havia visto nada, ninguém me acreditaria, afinal de contas eu estive  lá, não estive, de frente para ele? Eu não vi os olhos piscarem freneticamente antes de irem embora? Sabe Deus que oceano eu teria de engolir para conseguir esquecer aquela cena. 
         Todos os dias eu ia até o Colégio ouvir os alunos e os problemas que eles tem, por que os adolescentes têm sempre os mesmos problemas, os pais tem um pouco de preguiça de contar pras crianças como funciona o mundo e as pobres crescem achando que casamento dura pra sempre e só se é feliz se os pais não se separam. Mas quando bate a meia idade e todos resolvem virar tão adolescentes quanto os próprios filhos, a coisa vira um caos, mas o problema do Isaac era diferente por que o pai dele nunca tinha se casado, ele era adotado, deixaram o menino na porta da igreja, o pai era sacristão, ministro e diácono e tudo o mais que se pode ser , encontrou a criança e adotou. Uma fila beatas caridosas logo se formou na porta de sua casa, dispostas a ajudar o pobre homem solitário a criar o meninote, Isaac era filho do pai e da paróquia. Amém.
 Isaac que não entendia das coisas, nascido ontem, via recair sobre si as mais sublimes previsões, era a semente plantada de um popstar da fé, o próximo a vender milhões de discos e arrebatar fiéis. Ele não parecia estar muito feliz com isso, na verdade até gostava de cantar e tinha mesmo uma voz boa, apesar da idade de seus tropeços hormonais. 
Eu as vezes sonhava que ele tinha vinte anos. Vinte e dois. E dormia em paz. Mas sua ficha escolar na minha não por tantas vezes não me deixava sequer uma ilusão, ele tinha dezessete, mal completos dezessete anos.
       O homem saiu na porta e me chamou, já fui disposta a não lhe contar nada, minha vida não era da conta de ninguém já não bastava o que ainda haviam de falar de mim por ai, jornais baratos explorariam o caso como hienas famintas, tão claro saber, capaz de ser linchada.
Eu disse, eu era psicóloga, quer dizer, fazia o estágio no colégio, nós ficamos muito próximos, isso é comum nesses casos, o senhor sabe bem. Não havia nada demais, eu apenas o estimulava a seguir seu próprio caminho, essas coisas que os seres humanos tem direito, a própria vida a decidir entende?
O delegado obviamente não entendeu e foi direto ao ponto. Olhei para ele durante alguns segundos antes de responder . Ele não tinha nada de parecido com os de filme, tinha um cheiro bem forte de suor por sinal, o que eu não daria para sair correndo dali no meio da chuva?
Não senhor, eu menti, esse é o mais perfeito absurdo, nós nunca tivemos nada. Isso é apenas especulação. O pai dele tinha sérios distúrbios, criou uma realidade paralela, nunca houve nada que pudesse ultrapassar as barreiras do aceitável entre mim e aquele garoto.
Mentira, mentira, mentira. Houve uma , duas e três e assim seriam infinitas vezes até que nos fartássemos de sermos felizes, e a culpa parasse de me corroer, foram muitas as vezes e ainda seriam outras. E como era dor pura dizer que não haveriam mais de ser. 
 O homem pareceu não convencido com minha negativa, mas também não se preocupou muito com isso, afinal de contas não havia muito que fazer naquele caso. Perguntou-me sobre o pai. Ele também sabia que ele era louco. E agora não havia duvida alguma, o pai agira por puro desespero ante a decepção, tem gente que não lida bem com isso, eu já disse, acabar com a realidade que acreditamos ser a ideal é um rombo enorme. Enorme... Ele via o filho fazendo sermões paras multidões, cantando para fiéis em transe catártico. Um popstar sagrado pode-se dizer assim...Eu morreria de rir se alguém viesse me contar e não tivesse acontecido comigo.Continuei:
- Vocês tem bons psicólogos, vão chegar a bons resultados. Eu não tenho mais nada a dizer, senhor, se me permite ir embora, estou exausta, preciso descansar tenho negócios a cuidar, se é que o senhor me entende.
Ele consentiu, eu terei que voltar diversas vezes ali ainda, mas se tem uma coisa que nunca fiz foi cair em contradição, muito se falará ao vento,mas nada se fará, bons antecedentes, me culpar pelo que? Breve todos se convencerão que eu realmente era apenas uma amiga preocupada e não uma pedófila, corruptora de menores.Case closed.