quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Mesa Antiga

Um frio miserável. Subiu a alameda arborizada e passou os portões. A cidade era agora um borrão amarelado, parecia toda suja.  Viu de longe Lola acenando, um alivio " Que saudade de você, Angela!Veio finalmente buscar seu diploma?" riu a amiga "Ele não me faz a menor falta. Pode usar ele de papel toalha no banheiro feminino, as arvores agradecem." Caminharam pelos corredores amadeirados. Lola riu, abraçou a amiga. Sabia o motivo da visita repentina "Você vai realmente fazer isso?" "Vou. Laura tem quinze anos, completou mês passado. Nunca me perguntou nada a respeito, para ela sempre foi tudo muito natural. Um alivio ela não querer fazer festa, essas coisas pedem tradições inúteis, não queria grilos na cabeça da menina, ela quis ir a Disney com umas amigas, achei justo, ela foi. E eu vim por que achei justo ele saber as coisas que aconteceram." sentaram-se numa mesa da cantina. Lola pegou um café " Ele não é a melhor das pessoas, você sabe disso, aliás, o tempo só tratou de piorá-lo...." "Ora me conte uma novidade." "Novidade? Ele é chefe do departamento agora." "Essas paredes devem transpirar ética ." Lola riu  "Até tinha esquecido que essa palavra existia." E então calou-se abruptamente. Cumprimentou com sorriso amarelo uma mocinha muito pálida e magra, de cachecol e cabelos revoltos. " Se eu te contar quem é essa figura..." "De quem se trata?" " É nosso primeiro lugar na prova do mestrado.  Mas se duvidar não consegue colocar letras em ordem alfabética, coitada, dei aula pra ela em duas cadeiras, foi muito complicado..." "E como pode essa pessoa ter chegado no mestrado? Aliás, você aprovou essa guria como?" Lola sorriu sarcástica "Esse instituto é uma ilha cercada de ética por todos os lados, lembra? " " Favorecimentos existem desde que o mundo é mundo pelos mais variados motivos." "Nesse caso o motivo é o apreço imenso que nosso chefe de departamento tem por ela."  Por que uma coisa daquelas não a surpreendia?  "Na verdade" continuou Lola " É bom que você saiba. Talvez você queira dizer a ele a verdade sobre Laura, mas pense bem antes, por que ter esse tipo de sujeito de volta na sua vida talvez não seja das melhores opções. Ele está respondendo dois processos por assedio sexual. Duas alunas, uma delas caloura, menor de idade. Foi muito sério... E abafado, claro. " Ângela sorriu fitando na janela o horizonte montanhoso  "Isso só me dá certeza de que tomei a atitude mais acertada sumindo daqui." "Você ainda quer dizer a verdade?" "Sim." "Olha, Laura é uma moça linda, você fez um bom trabalho, se me permite dizer, não jogue fora os últimos 15 anos." Mas não se tratava de jogar fora o que quer que fosse. Se tratava de justiça. Ele não poderia mais inocentar-se diante de si mesmo por não ser presente, por não saber a verdade. O fato de não ter lhe contado antes apenas servia para fazer com que ela mesma também inocentasse toda a ausência que ele fora nos últimos anos e não era certo, nem justo continuar com aquilo. Sabia que poucas coisas mudariam na verdade, ou talvez nada. Ele costumava ser indiferente com o que representasse impedimento ao progresso do caminho que traçara para si, pulverizando como uma praga qualquer o que lhe servisse de barreira. Mas, ainda assim, era justo que soubesse sobre Laura pois agora seria consciente de sua própria ausência. "Não se trata de jogar fora, enfim, tenho minhas razões." Lola soltou um suspiro resignado " Ele está lá em cima na sala dele. Esse horário está sozinho, a fulana que passou pela gente já terminou o serviço por hoje, esse cara é tão sistemático que tem hora marcada até pra ganhar boquete!" depois corou por que não era dada a falar essas coisas, mas não resistira a piada. Ângela sorriu para Lola e viu nela uma iminência de cabelos brancos no canto direito da testa "Oh céus. " e lá fora a neblina se dissipava conforme  o sol subia. Subiu as escadas de madeira. Bateu na porta. "Pois não." ele disse lá de dentro com aquela mesma voz mediana. Abriu. Ele obviamente  levou um tempo até conseguir saber que se tratava de Ângela. Levantou-se "Mas... Mas ora, que coisa... Você por aqui! Mas que ventos a trazem depois de tanto tempo...?" ela não respondeu. Enquanto ele soltava palavras sem sentido e perguntas sobre ela e seus motivos, ela abriu a bolsa com cuidado e tirou de dentro um envelope branco. Jogou em cima da mesa "O que é isso?" ele ainda perguntou " Eu não vou ficar aqui para te ouvir duvidar da verdade" ela disse enquanto ele tirava de dentro do envelope as fotos de uma menina que lhe pareceu amedrontadoramente familiar  "Na verdade você vai ver que a natureza foi  generosa com ela, apesar de ter essa sua mesma cara ela tem muito pouco de seu gênio. Enfim, não há como duvidar, é sua. A ignorância foi um álibi pra você até hoje. Agora não é mais. Faça o que quiser com isso." e saiu dali com a mesma placidez que entrou, seus olhos enjoavam só de ver aquele rosto, desceu as escadas e se perguntou como semelhante criatura poderia ter resultado numa moça tão boa quanto a própria filha. 
Ele, por sua vez, sentado frente aquelas fotos só conseguia pensar em como Ângela havia engordado . Riu sozinho "O tempo acaba com as pessoas mesmo" e, sem obviamente olhar-se no espelho, recolheu as fotos e jogou-as na gaveta. E lá elas ficaram até  ele ser promovido a diretor do instituto e ter de mudar-se para uma sala maior, e consequentemente, mudar-se para uma mesa maior. Levou consigo para a nova mesa maior apenas um cinzeiro de mármore e um porta papéis com o brasão da universidade. A antiga mesa foi doada para uma Escola Estadual no subúrbio, com suas gavetas e seus velhos papéis.











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