terça-feira, 6 de novembro de 2012

Tia Nice


     A casa da Carol, pra mim, sempre representou essa coisa assim meio refúgio, por que ela, de todas nós, era a única que jamais havia se mudado de casa desde que a conhecemos, e o conjunto das coisas dentro de sua própria casa mudara muito pouco também desde então.
   E hoje eu quero falar das férias em 1996 que a gente ganhou o CD das Spice Girls e passou o tempo todo dançando e jogando taco na rua, ralando a tampa do dedão do pé. Depois eu quero falar também de 1999 quando a gente ouvia Raimundos nas noites quentes de verão e achava que era roqueira. Eu quero falar de 2000 quando ficamos de recuperação final de matemática e estudamos como doidas na mesa da cozinha para não ir pra recuperação de verão, evento que poderia nos traumatizar pelo resto da vida (Deus me livre ficar sem férias!). Eu quero falar de 2001 quando tinhamos enormes listas de exercicios, intermináveis, e nenhuma disposição pra fazer.
     Enquanto tudo isso acontecia, os anos passavam, menstruamos, cresceram os peitos, perdemos a virgindade , aprendemos a fumar, começamos a beber. Enquanto os anos passavam nós fomos e voltamos, mas a casa era sempre a mesma. Por que enquanto tudo acontecia, Tia Nice acordava a gente às seis horas da manhã para tomar suco de beterraba com cenoura. E depois na hora do almoço ai da gente se não comesse direito! Era a bendita da lazanha com batata frita e por fim uma fruta. Eu nunca gostei de frutas mas eu comia assim mesmo muitas vezes. Por que se eu falasse que não gostava de frutas, era triste, ela contava todas as qualidades, era bom pra saude, que coisa! E enquanto a gente estudava pra prova de recuperação tudo aquilo que não tinha estudado ano todo, ela fazia mil e uma promessas, rezava pra gente e quando a gente passava vinha de novo a lazanha e a batata frita para comemorar e o bolo de cenoura também. E haviam aquelas noites de domingo jogando caxeta e os dias que eu acordava mais cedo e ficava lá na cozinha conversando com ela enquanto a Carol não acordava. Enfim, houveram mais de mil coisas impossíveis de serem listadas ou ditas, apenas acontecidas.
    Uma aluninha me disse uma vez que o chato de ser adulto é que as pessoas que a gente gosta vão embora. Na época achei esse um pensamento profundo demais pra uma criança de seis anos, mas nunca fez tanto sentido como agora. Acabei de completar quarto de século e a vida todos os dias esfrega na minha cara "Garotinha, nada será como antes." Para o bem ou para o mal, o tempo trata de levar tudo embora, refúgio ou tempestade.
   Gosto todavia das adultas que nos tornamos e da capacidade de nos mantermos juntas mesmo distantes, há anos eu não via a Priscila, há tempos não conversava com a Fernanda. A Talita tinha meses que nem sabia dela, e no entanto todo mundo estava lá, bebendo uma cerveja no meio de um funeral! Não somos insensíveis, somos sensatas, não há que se morrer junto, não há que se derrubar. É dificil dizer no meio desse furacão todo se um dia essa coisa incômoda vai sair do coração e da garganta da gente, mas estamos tentando, isso é parte também das crianças que fomos, das raizes que criamos e em todas essas horas Tia Nice estava lá.   Justo que se beba em sua memória, que se ria de suas lembranças. O choro vem, assim meio besta, quanta bobagem, no fundo fomos todas criadas pela tia Leila, pela tia Vera, pela tia Fatima (aquela tosa!), pela tia Nice, pela tia Rita , pelo tio Sergio, entrando e saindo dessas casas, abrindo geladeiras, levando broncas, a Thais ligando pra mãe dela ir buscar ela (um clássico!) e todos esses fragmentos de vida. Ainda há muito que se viver.
    Daí, depois do fim, a Priscila ainda disse "Bom é ter do que lembrar..." e eu concordei com ela. Bom é ter do que lembrar. Que pelo menos isso o tempo não leva, nossa memória e a capacidade de transporte no tempo que ela  nos traz.  O poeta disse que quem lembra tem. Então, com toda certeza, teremos a Tia Nice sempre junto com a gente. Sem mais.





4 comentários:

Unknown disse...

Adorei....várias lembranças..a parte da Tha ligar para a tia Vera ir buscar....as vezes ela ia até la no bavex e a Tha ja não queria mais ir embora, só deixava uma roupa...rsrs...e a tia Nice ficava sempre achando que a Carol estava ficando demais, que iria atrapalhar...rs

Carol Galharte disse...

Nesse dia eu pude sentir exatamente a vida como se eu tivesse 97 anos. Olhando de fora,com tranquilidade, com porque nao dizer alegria?Um sofrimento que termina!Um filme de uma vida que passa na cabeca. No meio da merda toda a vida ainda faz questao de te mostrar a importancia das pessoas. Ali eu me senti amada e via pessoas que amavam a minha mae,pessoas que as vezes nao tem tempo nem de sair comigo nas horas boas, mas na pior hora ela está lá...e nao deixa voce cair. Amo muito voce e todas.
Que experiencia...

Daniel Moreira disse...

Muito lindo! Achei super legal ver a Cata mais sentimental!!! Uma grande homenagem para uma pessoa que devia ser uma segunda, terceira mãe. Lindo, lindo, LINDO!!!!

Natália disse...

Simplesmente adorável!