terça-feira, 24 de abril de 2012

Antropofagia

      "Eu não acredito que no você diz..." ela disse pela primeira vez a frase que não se cansaria de repetir. Era de noite, fazia um calorão e lá no fundo haviam  relâmpagos por entre as montanhas"Deve estar chovendo em Pinda..." e ele contou alguma história engraçada de alguma cidade por qual passara onde alguma coisa relacionada a chuva acontecera. Ela não pode deixar de rir, era vicio. Depois de um certo tempo ficou dessas pessoas que riem falsamente da propria piada e  da alheia, mesmo quando não tem muita graça. Mas fora o riso dela  que o prendera ali. "Nunca tive grandes pretensões amorosas.." tentou dizer, mas era uma grandessíssima mentira. Se ultimamente não sonhava era bobagem, sempre há um hiato, mas os sonhos voltavam meio ainda sonolentos do tempo hibernando, não sabiam se avançavam ou paravam, não sabia muito o que pensar. Só não acreditava em uma palavra sequer do que ele falava, não sabia se por que não queria ou se por que não dava mesmo.
      Foram dar uma volta na pracinha. Aquele vento de chuva e as luzes alaranjadas, ela suspirou meio contente "Puta merda, como amo esse lugar!" ele estranhou por que não via nada demais. Sempre fora meio assim, estava acostumada. Gostava de coisas, lugares e pessoas que não faziam sentido algum, não formavam nenhum conjunto coerente.
        E, oh céus, ele era tão bonito quanto uma tigela de lasanha fumegante e ela tinha tanta fome. Era do tipo que dificilmente se iludia "Quando tinha uns dezoito anos namorei um rapaz que dizia que me amava mas eu nunca acreditei. Fui muito sábia, apesar da pouca idade, por que só me deixei enganar muito depois. No fundo..." ela deixou cair uma pedrinha na poça da água "No fundo  a coisa era bem essa, me deixei iludir... Uma mentira muitas vezes contada vira verdade... Quem foi que disse isso mesmo...?" ele sorriu de novo, aquele sorriso de miss que ele tinha, daqueles garotos de clube dos anos cinquenta, dos calendários que vira na casa da avó, ele sorria como um picolé numa tarde daquelas escaldantes de verão "Não sei quem disse, minha bela... " e ela só conseguia compará-lo com comida. Ele continuou "Os homens são todos fanfarrões. Menos eu, claro..." ela riu de novo, dessa vez de verdade por que ele era de uma cara de pau cativante, a luz do poste deixava todo mundo alaranjado "Você gosta de doce de abóbora?" " Talvez... Tanto tempo que não como, acho que nem me lembro..." pois queria dizer a ele que parecia um doce de abóbora. "Você parece um doce de abóbora..." ele era de pouca subjetividade culinária "Eu?" "É um elogio, tá bom?" e ele ria-se com aquela cara linda como estrogonofe de frango com batata palha "Eu queria seu telefone..." ela ainda olhou aqueles braços tão bem feitos, duas porções de batata gratinada "Pra que, você não vai ligar mesmo..." e ele riu de novo, não respondeu, apenas anotou com aquelas grandes mãos. Pensou em comida novamente e se repreendeu. Estava louca, ainda bem que ele não vira.
 " Não acredito no que você diz..." ela ainda disse antes de ir embora e ainda  outras diversas vezes, mas depois foi perdendo a certeza e no fundo resolveu acreditar de uma vez. Se não conseguisse manter dispensa cheia a vida toda, pelo menos a ceia daqueles dias seria farta. Salivou.

domingo, 1 de abril de 2012

Vulto de Enfeite

"A dor as vezes dói tanto que não dá vontade de escrever" eu escrevi um dia daqueles no meu diário embaixo da árvore escura que havia no meio do pátio perto dos banheiros, onde já não havia ninguém. "A dor as vezes dói tanto que sinto sumir na dor, desaparecer." Mas nada doía tanto assim na vida além do meu próprio drama, particularmente  a dor da ausencia do ser. Eu fui sumindo.
 Eu ainda me revirava na cama a noite pois importunos sonhos roubavam-me as vezes as poucas horas de sono, eu não dormia e não levantava, ficava lá me vendo sumir. Um dia após o outro, a ausência de ser.
Eu gostava de sentar embaixo da árvore escura e pensar que surgiria de dentro de umas das portas dos banheiros um homem e me fizesse mal. Mas mal fazendo me fizesse sentir bem. Mal me fazendo me fizesse sentir. E eu continuei vendo o dia acabar muitas das vezes embaixo da árvore escura e nada aconteceu. "Tem uns oitenta anos essa árvore.." um dia me disseram e eu nem calculava que oitenta anos era muito tempo para ser invisível. Entre a multidão de árvores paradas no mundo aquela estava parada a oitenta anos. Havia o salão em frente a árvore onde nos reuníamos antes pra rezar, mas aos poucos todos os outros também foram partindo, eu achava aquilo de sumir muito pouco justo, por que todos partiam mas eu e a árvore íamos desaparecendo no mesmo lugar. Se alguém viesse e se sentasse em frente a mim e a árvore nos veria desaparecer aos poucos. Em breve caberiamos ambas em uma caixinha tão pequena que ninguém faria questão de guardar em lugar nenhum, tão pequeno enfeite, incapaz de enfeitar. Eu andava invisível por aqueles idos, e as portas dos banheiros continuavam todas fechadas. Quanto tempo ainda?