domingo, 18 de setembro de 2011

Aquilo ou Mais Uma História Sobre Casamentos de Fachada

Acordou com muita dor de cabeça. Na penumbra reconheceu o quarto de hóspedes da casa de Carmem. Foi se levantando. Teve medo de olhar para o lado. Pelas persianas o sol parecia forte, era feriado então, provavelmente Vicente voltasse para o Rio apenas no final da tarde, calado e ensimesmado a semana toda, já havia alguns anos que esse ritual se repetia no Natal.
E ela sem coragem para voltar para casa, a família nem sempre podia vir e nos últimos tempos ela nem queria mesmo que viessem por que vinham cheios de coisas para contar que ela não queria ouvir e de lembranças que não queria ter, por isso nas festas ela ficava sozinha na casa enorme, ouvindo o eco dos passos dos empregados ao longe, na enorme cama vazia, esperando as festas malucas de Carmem acontecerem para que pudesse ouvir barulho, as vozes, os risos incontidos e os abraços perdidos do rapaz que ressonava  novamente ao seu lado, inocente como ela mesma um dia fora, dormindo o sono dos justos, pensando estar fazendo um bem tremendo a mulher do patrão, que aprendeu a fumar de tanto tédio, que tocava piano o dia todo e que quase nunca falava com ninguém.
A Carmem já dizia “Para tudo é preciso primeiro dar festas, por que é necessário que exista alegria nem que seja por algumas horas por ai, que é para não se enlouquecer de repente...” Enlouquecer de repente, se não enlouquecera até então, não era possível que o fizesse de repente. Nascera assim meio estranha com aquela capacidade de pensar pouco naquilo que doía que era para evitar ficar com a cara amassada demais depois do choro.
Apesar do tácito acordo de cavalheiros entre ela e Vicente a culpa católica herdada dos tempos do colégio interno (herdara ainda tanta coisa daquela época) ainda lhe pesava as costas. Por que continuavam sorrindo para fotos juntos, os casos dele muito bem guardados e o dela... Bem aquilo também era novo, não sabia muito bem classificar o que era, fora ou poderia ser. Por que numa noite em estrelas se deitara com o motorista, deviam ter a mesma idade, apesar dela parecer, ou se sentir, tão mais velha.
Ele falava de tanta coisa, ela apenas ouvia, e depois...bem depois era aquilo, que tinha vergonha de pensar, por que com o marido dizia “fazer amor” , por que afinal de contas  sua obrigação era amar o marido, mesmo que não fosse assim, fingia que era e pronto. Mas quando se tratava de Danilo, qual era o nome a do que faziam?
 Com nome ou sem nome vinham fazendo-o sempre, Carmem era prima de Vicente, mas pouco se importava com aquilo, muito dinheiro e ninguém a vista era o que Carmem tinha na vida, torrava tudo em festas e quando Vicente sumia no final do ano, consumido também na própria dor de sua perda (ele perdera a primeira mulher na véspera de Natal num acidente de automóvel. Ela estava grávida do segundo filho deles.) ela nem hesitava em chamar Danilo, que tinha o pai italiano e que viera de São Paulo, que falava com aquele sotaque e dizia que um dia ia levá-la para conhecer a Itália, por que o pai viera de lá, e dizia lindas poesias bêbado, ela ria-se, o álcool e o furor apaixonado dos homens são muito úteis por algumas horas, mas demorar-se neles tornava-se o problema. Até gostava de Danilo, por que falava muito e não fazia perguntas, ela se distraia deveras e ele nem sabia o quanto, mas agora havia a ressaca. Ele achava mesmo que tinha novidades, justo ela que já vira tudo, ela que já sabia tudo, ela que não tinha mais novidades.
Ele agora dormia, o quepe no chão ao seu lado, era manhã de Natal ,o sol brilhava lá fora e ela se levantou. Em silêncio se vestiu, não sem uma pitada daquele cômico pudor que lhe sobrara também da época do colégio interno (herdara ainda tanta coisa daquela época). Então acordou-o. Ele sabia bem que quando o dia amanhecia ela era de novo a mulher do patrão, e por isso quando era assim não se falavam.
Depois de descentes, foram ao carro, não sem antes passar pelo jardim gramado que repousava ainda na bagunça do dia anterior. No caminho, recostada no estofado de couro amarronzado ela via o mar brilhando ao sol e teve vergonha das coisas que fizera, apesar de serem muito boas de se lembrar. Se pelo menos conseguisse nomeá-las, não sentiria tanta culpa e para passar o tempo colocou-se a pensar. Na falta de substantivo próprio continuou utilizando-se do pronome demonstrativo “aquilo”. Chegou em casa e tomou um longo banho. Vicente chegaria logo logo.