quinta-feira, 10 de março de 2011

Amor de Pai


“ Ele poderia muito bem ter pelo menos dezenove. Dezoito que fosse.  Pelo menos dezoito, meu Deus, para não ser tão mal. Dezoito para não soar tão ruim...”

Eu ainda olhei a chuva cair . Ela insistia há uma semana. Eu queria morrer, como em tantas outras vezes o quis, tantas vezes que morrer virou tão banal que pareceu pouco, talvez eu quisesse só deixar de ter visto as coisas, talvez isso fosse ainda maior que morrer. 
As cadeiras, as mesas, os pôster de campanha, endereços de ongs nas paredes e as pessoas. Pessoas e mais pessoas. Transitavam de um lado para o outro os homens fardados, seguravam a burocracia na prancheta como se fossem a cura do cancer, do meu lado uma travesti acendeu um cigarro "Raça ruim do caralho!" murmurou.
Eu sorri. O estado criara mesmo uma raça de humanos de pouca ou nenhuma sensibilidade ( a sensibilidade que havia decerto de ser um defeito posto que nos torna vulneráveis, seres humanos que não sentem não se findam e eu ali já me via escorrendo ralo abaixo, como resto de água de banho) e no final a lei me parecia cada vez mais transformar o mundo numa enorme pré escola onde não podia mais nem mesmo ter poder sobre meus próprios pulmões, se assim os quisesse destruir, segregando-me aquela varanda imbecil por cinco intermináveis minutos até o filtro se queimar entre meus dedos. O frio aumentava.
E se eu dissesse que não havia visto nada, ninguém me acreditaria, afinal de contas eu estive  lá, não estive, de frente para ele? Eu não vi os olhos piscarem freneticamente antes de irem embora? Sabe Deus que oceano eu teria de engolir para conseguir esquecer aquela cena. 
         Todos os dias eu ia até o Colégio ouvir os alunos e os problemas que eles tem, por que os adolescentes têm sempre os mesmos problemas, os pais tem um pouco de preguiça de contar pras crianças como funciona o mundo e as pobres crescem achando que casamento dura pra sempre e só se é feliz se os pais não se separam. Mas quando bate a meia idade e todos resolvem virar tão adolescentes quanto os próprios filhos, a coisa vira um caos, mas o problema do Isaac era diferente por que o pai dele nunca tinha se casado, ele era adotado, deixaram o menino na porta da igreja, o pai era sacristão, ministro e diácono e tudo o mais que se pode ser , encontrou a criança e adotou. Uma fila beatas caridosas logo se formou na porta de sua casa, dispostas a ajudar o pobre homem solitário a criar o meninote, Isaac era filho do pai e da paróquia. Amém.
 Isaac que não entendia das coisas, nascido ontem, via recair sobre si as mais sublimes previsões, era a semente plantada de um popstar da fé, o próximo a vender milhões de discos e arrebatar fiéis. Ele não parecia estar muito feliz com isso, na verdade até gostava de cantar e tinha mesmo uma voz boa, apesar da idade de seus tropeços hormonais. 
Eu as vezes sonhava que ele tinha vinte anos. Vinte e dois. E dormia em paz. Mas sua ficha escolar na minha não por tantas vezes não me deixava sequer uma ilusão, ele tinha dezessete, mal completos dezessete anos.
       O homem saiu na porta e me chamou, já fui disposta a não lhe contar nada, minha vida não era da conta de ninguém já não bastava o que ainda haviam de falar de mim por ai, jornais baratos explorariam o caso como hienas famintas, tão claro saber, capaz de ser linchada.
Eu disse, eu era psicóloga, quer dizer, fazia o estágio no colégio, nós ficamos muito próximos, isso é comum nesses casos, o senhor sabe bem. Não havia nada demais, eu apenas o estimulava a seguir seu próprio caminho, essas coisas que os seres humanos tem direito, a própria vida a decidir entende?
O delegado obviamente não entendeu e foi direto ao ponto. Olhei para ele durante alguns segundos antes de responder . Ele não tinha nada de parecido com os de filme, tinha um cheiro bem forte de suor por sinal, o que eu não daria para sair correndo dali no meio da chuva?
Não senhor, eu menti, esse é o mais perfeito absurdo, nós nunca tivemos nada. Isso é apenas especulação. O pai dele tinha sérios distúrbios, criou uma realidade paralela, nunca houve nada que pudesse ultrapassar as barreiras do aceitável entre mim e aquele garoto.
Mentira, mentira, mentira. Houve uma , duas e três e assim seriam infinitas vezes até que nos fartássemos de sermos felizes, e a culpa parasse de me corroer, foram muitas as vezes e ainda seriam outras. E como era dor pura dizer que não haveriam mais de ser. 
 O homem pareceu não convencido com minha negativa, mas também não se preocupou muito com isso, afinal de contas não havia muito que fazer naquele caso. Perguntou-me sobre o pai. Ele também sabia que ele era louco. E agora não havia duvida alguma, o pai agira por puro desespero ante a decepção, tem gente que não lida bem com isso, eu já disse, acabar com a realidade que acreditamos ser a ideal é um rombo enorme. Enorme... Ele via o filho fazendo sermões paras multidões, cantando para fiéis em transe catártico. Um popstar sagrado pode-se dizer assim...Eu morreria de rir se alguém viesse me contar e não tivesse acontecido comigo.Continuei:
- Vocês tem bons psicólogos, vão chegar a bons resultados. Eu não tenho mais nada a dizer, senhor, se me permite ir embora, estou exausta, preciso descansar tenho negócios a cuidar, se é que o senhor me entende.
Ele consentiu, eu terei que voltar diversas vezes ali ainda, mas se tem uma coisa que nunca fiz foi cair em contradição, muito se falará ao vento,mas nada se fará, bons antecedentes, me culpar pelo que? Breve todos se convencerão que eu realmente era apenas uma amiga preocupada e não uma pedófila, corruptora de menores.Case closed.

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