terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Getulio, a Morte e Eu

No dia em que Getúlio morreu fazia um solzinho estranho, mas era só por que era interior se fosse na capital, o sol seria tão forte quanto a comoção. No interior as coisas sempre chegavam depois e no outro dia fez um sol de rachar. Mas no dia, naquele mesmo, fazia um solzinho insosso, e Lauretta colocava as roupas no varal.
Era um casarão grande com um 1918 na porta, que era para provar que já fazia quase quarenta anos que tanto a casa quanto a família eram maiores que todo o resto dali. Eu sempre olhara o casarão de baixo para cima e o telhado me parecia tão distante quanto os jantares que ocorriam ali ou as bonecas da única menina da família, que morrera de tosse comprida muitos anos antes de eu nascer, e que repousavam no quarto intocado, a não ser pela Lauretta que entrava lá de vez em quando para tirar poeira. De longe havia as bonecas do anjinho, os jantares e as palavras. Jamais havia pronunciado uma sequer na vida, mas sabia que se um dia viesse a falar, e pudesse escolher o que falar primeiro diria: “burra!”. Coisa mais linda ficar brava e poder esbravejar, e não sair batendo os pés e chorando estranho como era meu costume nessas ocasiões. O que me consolava era que meu cabelo era cheio de cachos.
Lauretta era loira e muito magra, e como eu dizia, estendia roupas no varal quando deu no rádio que o Getúlio tinha morrido. Ela nem terminou de estender a roupa e correu casa adentro atrás da madrinha para contar–lhe a má noticia. Madrinha, que jamais chorava, apenas disse: Era um comunista esse Getulio!
Eu brincava com Silvinho no quintal. Ele era tão novinho e magro como a mãe. Filho de uma indecência só, a Lauretta e o preto André da Vila, uma coisa muito escondida, madrinha só percebeu mesmo quando Lauretta começou a engordar. Um varapau daqueles jamais ganharia peso a toa. O Silvinho nasceu uma coisinha muito bonitinha, mas sem entender por que a mãe odeia ele com todas as forças. Desconfio que seja por que encontraram o André da Vila na entrada da cidade, enforcado na figueira, dois dias depois do Silvinho nascer. Todo mundo diz que foi como o Getulio, suicídio. Mas Lauretta murmura pelos cantos que mataram o pai do filho dela só por que era preto. Tive medo de um dia ser preta.
No outro dia não teve escola, no outro dia não teve nada por que o padrinho, que adorava ser triste, pendurou um pano preto na varanda do sobrado e fez um discurso na hora do jantar. Que eu ouvi todo, enquanto jantava com Lauretta, Silvinho e os cachorros lá no quintal. Madrinha separava muito bem as coisas. Gente com, gente, bicho com bicho. E aquela casa enorme para ninguém morar. Quando Getúlio voltou achei que ganharia um lugar naquela casa, naquela mesa. Mas Getulio morreu e continuei lá fora. Jamais consegui dizer uma palavra sequer e nunca chamei ninguém de burra. E depois que Getulio morreu não acreditei mais nos políticos também. Por que esses mentem até mesmo na hora de morrer!

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