sábado, 20 de novembro de 2010

Tio


Estava sentada na sala de estar lendo um livro da Clarice Lispector por que se julgava muito intelectual. Absorta, somente percebeu uma outra presença na sala quando a mesma fez barulho nos jornais. Ergueu a cabeça:
- Ah,oi Tio.Meu pai ainda não está em casa.
- A Maria me disse quando cheguei. Eu vou esperá-lo.Ele demora?
-Não sei. Talvez.
Ela seguiu tentando ler, acompanhando os seus passos pela sala, sem querer. Era novo o Tio, mas estava começando a ficar careca igual a São Francisco:
-Senta, Tio.
Ele olhou-a, interrompendo o andar:
- Estou bem, querida, obrigada....E você como vai? Já terminou o colégio?
- Falta pouco. Estou estudando pro vestibular.
- Vai para São Paulo?
- Não sei ainda, Tio... Queria, mas me acho tão criança ainda....
O tio sorriu com o canto da boca. Achava a menina bem crescidinha.
-São Paulo é o centro desse país, seria muito bom pra você....
-A cidade é grande Tio, e eu ainda me assusto com tanta coisa... -ela riu de novo. Olhou para a porta da sala. O pai a qualquer momento romperia ali, para seu horário de almoço.O tio não era assim tão amigo de seu pai. Por isso não frequentava a casa com frequência, mas gozava de certa intimidade na família.
- Tio, como está a tia?
- A Tia?-ele engasgou- Não estamos mais juntos.
- Uma pena, eu gostava dela.
- Não tenho paciência com certas mulheres.
-Ah...- tentou se absorver na leitura novamente. Mas o tio prendia suas pupilas com seu caminhar agitado -Papai pode demorar, você não quer deixar um recado? Parece apressado...
-Não tenho pressa, Lili. -ele sorriu novamente. Estava mais magro? A verdade era que todos sabiam que as mulheres é que não tinham paciência com ele. O Tio era um sujeitinho à toa. -Está lendo o que?
-O Lustre, da Clarice Lispector.
Ele se aproximou para ver a capa:
-Hum...Não tenho lido muito ultimamente...Você vai fazer o que mesmo? Engenharia?
- Educação artística.-Lili riu resignada. Não houvera uma só vez que lhe perguntassem isso que não rissem de sua resposta. O Tio todavia continuou serio.
-Isso é diferente.
-Sim é.
-Fazia tempo que eu não vinha aqui. Esses quadros nas paredes você que pintou?
-Sim.
-São bons. -ele sentou-se ao seu lado. Ela teve vergonha por que estava com as pernas de fora, mas o que poderia fazer? Estava sozinha em casa, tinha que fazer sala para Tio daquele jeito mesmo, era feio deixar as visitas sozinhas na casa das pessoas. Ela descruzou as penas e cruzou novamente do outro lado.
-Essa aliança ai no seu dedo é nova....
-Estou namorando Tio, já faz um mês.
-É você cresceu mesmo...
Lili ignorou o comentário jogando o livro para o lado.
-Não tio, sou criança ainda, não vou nem morar sozinha...
-Será que seu pai ainda demora?
-Demora...-ela disse. Ofegava de leve, tentou disfarçar- Ele sempre demora. O que você tem para tratar com ele é serio, Tio?
- Um pouco, sobre uma viagem de negócios mês que vem.-ele disse olhando para a ponta dos sapatos enquanto apoiava o cotovelo nos joelhos.
-Ah.
-Atrapalhei sua leitura não é? -ele sorriu novamente e ela teve asco daquele sorrisinho.  A mão dele tocou de leve seu joelho.
-Não tio. Está tudo bem, leio outra hora. -ela disse com medo de se mexer e perder o contato do joelho com a mão dele.
-Você tem a vida inteira para ler, Lili. Seu namorado não vem te ver hoje??
- Talvez à noite. Ele trabalha muito sabe como é... A gente não se vê com muita frequência. -ela disse.
O silêncio se seguiu por alguns instantes, até que ela mexesse finalmente uma das pernas para o lado, fazendo com que a mão do tio pulasse de seus joelhos para sua coxa:
-Ele não me dá muita atenção.
-Eu posso imaginar... Seu pai demora?
E Lili , que ainda ofegava de leve, puxou-lhe a mão para cima:
-Não Tio. Mas fique sossegado, não é nada demais. A empregada abre a porta e papai sempre grita com ela por alguma coisa, é fácil saber quando tem alguém chegando...
- Você não me viu chegar.
- Estava muito concentrada...
- Então se concentre em mim agora.
Ela afirmou com a cabeça e deixou-se deitar no sofá.
- Está bom assim para você?-ele perguntou.
-Tio, se demorar muito meu pai vai chegar. -ela disse com a voz levemente embriagada.
- Eu prometo ser breve....
-Agradeço...-ela sorriu enquanto permanecia quieta,imóvel,num estranho êxtase.O tio por sua vez parecia afoito e alegre como se tivesse esperado muito tempo por aquilo.
-Desde que fez doze anos,Lili...Você com aquela carinha me chamando de Tio...Irresistível...-ele sussurrou com a boca em seu umbigo.
-Ai tio, que absurdo!Justo você preso por pedofilia...As pessoas na igreja iam ficar chocadas...-ela riu.
- As pessoas da igreja não iam achar nada estranho...-Ele ainda disse antes de ocupar-se dela de tal forma que sua boca já não pôde mais dizer palavra. Lili ainda às vezes abria os olhos, fitava o teto, o lustre da sala pareceu turvo, as unhas roídas afundavam na almofada, Maria fazia o almoço na cozinha, ela não podia expressar-se, olhou para baixo e dali só via a careca iminente no topo daquela cabeça de meia idade. Riu. O tio não era mesmo muito de falar, ocupava-se melhor de outras coisas, o lustre ainda estava turvo, tocou os seios de leve, soltou um gemido grave. Estava feito.
-Eu disse que não ia demorar. -ele levantou-se e se refez. Ela também fez o mesmo ,sentou-se no sofá e continuou sua leitura.Tio sentou-se no sofá a sua frente. Então foi possível ouvir o barulho da porta e uma voz firme gritando:
-Ah Maria traz logo meu café e vê se não demora!-era o pai que, instantes depois, chegou à sala de estar :
-Mas olha quem está ai!Que bons ventos o trazem meu caro?
Tio levantou-se e estendeu a mão para o Pai:
-Vim tratar daquela viagem...
-Lili, minha filha você aqui lendo nem deu atenção ao Tio !-ralhou o pai.
-Desculpe Tio, eu prometo te dar mais atenção da próxima vez...
-Não se preocupe Lili. -Tio sorriu para Lili. E depois se dirigindo ao pai -Não é preciso ralhar com ela.Fui eu quem atrapalhou sua leitura. Lili está uma moça, não é? Como cresceu rápido essa menina....
-É...O tempo voa...-disse o pai- Mas venha ao meu escritório, vamos conversar ..
-Sim vamos...Até mais Lili...
-Até mais tio .-Ela se despediu, e finalmente conseguiu voltar a se concentrar em sua leitura.

5 comentários:

JURA disse...

bom conto, abraços

Lígia Santos disse...

Lili minha ídola!!!!

Não canso de ler.

Daniele Andrade disse...

Ela é minha idola tb! Afff tem coisa que só a ficção faz por você!

Lígia disse...

Adoroooooooooo

É sempre bom reler o que é bom!!!

Fábio Seletti disse...

Tiozão. kkkk